5.1.07

O imposto da Criação

Foi incrível. Algo distinto de tudo o que eu já havia provado. Recordo-me daquela manhã tenebrosa. Seguindo o rito ordinário de todos os dias – levantar, lavar o rosto, tomar café, escovar os dentes e iniciar efetivamente o dia –, notei que o tempo estava um tanto sombrio lá fora. Bem, poderia ser um dia de tempo duvidoso, sem chuva e sem sol, com previsões ambivalentes. Então nem liguei. Segui a rotina como era comum de se fazer... até que resolvi sair no quintal de casa, sempre me deliciava em contemplar a horta dos fundos, o mini-galinheiro de meu pai, a mamangaba que fez sua casa num tronco que escora a tela que cerca a parte de terra onde ficam as galinhas.

Que assombro! Minha vista aparentava estar terrivelmente nublada, não distinguia com clareza as formas das coisas, tudo o que era natureza se mostrava apenas como vultos aos meus olhos – e o mais curioso de tudo, o passeio de cimento, a casa, a cerca, o muro, tudo isto estava intacto, nítido. Logo notei que o fenômeno restringiu-se única e exclusivamente (e fantasticamente) àquilo que chamamos de criação, natureza, flora e fauna, se é que você me entende...

Percebi que não era um problema com minhas córneas. Algo muito sinistro estava acontecendo, e eu precisava saber. Meus pais acordaram, minhas irmãs também, e os levei para fora e indaguei: “Por favor, digam-me, vocês vêem o sol em seu ardor, a grama, às árvores, os pardais e tudo o mais de forma límpida e inconfundível?” Pasmados pela pergunta, só foram compreendê-la ao concentrar-se nessas coisas, algo que raramente faziam no dia-a-dia... Um “Oh, o que é isso?” me deixou com a certeza de que eu não estava doente, alucinado por remédios ou drogas, ou mesmo fora de mim...

Liguei a TV. Claro, se isso estivesse atingindo um grande número de pessoas, seria notícia; e logo ficaríamos sabendo o causa de tal estranheza. Para o aumento da tensão, o noticiário da manhã anunciava fatos estranhos ocorridos em gravações realizadas em jardins, praças, campos e qualquer lugar que houvesse belezas naturais. A curiosidade estava no fato de que todas as cenas de reportagens filmadas negligenciavam o ambiente ao redor, somente as construções e as pessoas é que apareciam na tela. E todos já estavam alarmados, não era uma ocorrência local. Todo o mundo começava a notar o misterioso fenômeno. O mundo se estremeceu diante daquilo que alguns chamaram de fim dos tempos...

Passados alguns minutos, e eu ainda com a TV ligada, ouvi dizer que um velho barbudo estava a apregoar uma mensagem não menos estranha do que os fatos ocorridos. O velho barbudo, sisudo, de cabelos longos, de fios grisalhos beirando a cor da prata, ele fora flagrado pelas câmeras e seu discurso gravado. Não se sabe ao certo de onde ele veio, mas estava no Rio de Janeiro, perto da baixado fluminense, e de lá falava a todos. Para resumir a história – não quero torrar sua paciência -, digo logo o que ele vociferou. Pois bem, segundo o velho, Deus estava de saco cheio das atitudes dos homens (essa foi a expressão); atitudes relacionadas ao mundo, que o homem decida fazer mal a si mesmo, essa era uma opção dele, mas degradar de forma irracional e inconseqüente toda a natureza, isso já era grande ousadia e desrespeito com tudo o que se apresenta como sagrado. Levando em conta tal proceder, o Eterno decidiu que o ser humano não mais verá nem desfrutará em plenitude de tudo o que antes lhe fora dado.

Com riqueza de palavras (parecia possuir grande erudição), linguagem às vezes poética, e oratória eloqüente, suas palavras foram transmitidas em todos os telejornais, repassadas em dvds, fitas vhs, cds de áudio, mp3, etc. e tal.

Foi um baque para todos nós. Ficamos atônitos e inertes, ruminamos e tornamos a ruminar suas sentenças. Detalho-lhes um pouco sobre as conseqüências desta decisão divina. Imagine comigo, olhamos para os campos e vemos em riqueza de detalhes árvores lindas, robustas, bem postadas, com um viço verdemente reluzente, beleza sem fim. Os pássaros canários da terra, todos cantores natos, pousando em seus galhos para prosear; sabiás, melodiosos como só eles sabem ser, fazendo seus ninhos em lugares altíssimos; e o que dizer do mar, que grandeza delicada, agressiva, sensualmente encantadora e ao mesmo tempo assustadora...; os riachos, ah, os riachos, as cachoeiras, os córregos cristalinos das cidadezinhas mineiras; o gramado rasteiro dos pampas gaúchos; a complexidade suntuosa da vida que ocorre na floresta amazônicas e a beleza nua do pantanal mato-grossense; tudo isso, mas tudo mesmo, sem falar das riquezas de outros países do mundo, fora agora retirado da vista de cada um de nós.

Bem, daí você me pergunta: “Não há um caminho, uma saída?” Ok, sei que me demoro com as palavras, mas ainda falta contar o final do discurso do velho. Para feliz, nem tão feliz assim, surpresa de todos, disse ele que Deus resolveu ter um pingo de misericórdia... Se quiséssemos apreciar as delícias da Criação, haveríamos de pagar por isso; fora instituído uma espécie de imposto para os que desejassem usufruir das riquezas da terra.

Doloroso. Terrivelmente doloroso ouvir tais palavras. Talvez fosse melhor ouvir que jamais provaríamos outra vez de tudo aquilo. Por que penso assim? Simples. Deus, em sua astúcia, deu um tapa de luva na humanidade. Já ouviu aquele ditado geralmente proferido por mulheres que largam de seus amores? Só se dá valor quando se perde... Então, era justamente isso que estava acontecendo. Agora teremos que pagar por aquilo que antes tínhamos recebido gratuitamente.
Era pura Graça, um favor que nem merecíamos, e para sermos gratos bastava cuidar de tudo. Mas não, não mesmo, não fomos capazes de cuidar; muito pelo contrário, detonamos paulatinamente cada reserva florestal, cada rio ou riacho, poluímos tudo ao ponto de nosso pulmão pedir arrego. E agora teremos que pagar (só a título de curiosidade, ouvi dizer que o dinheiro seria investido entidades que desde a muito já trabalhavam em prol da conservação do meio ambiente).

Pagar pra quem (pensou isso, não é?)? Pós-modernidade é outra coisa. O profeta – é, agora o chamei de profeta, pois é isso que ele é – deixou o número de uma conta do Banco In Natura – eu sei, eu também nunca tinha ouvido falar neste banco. Somente aqueles que pagassem a alta quantia estabelecida pelo Senhor é que poderia ter novamente, e em plenitude, seus sentidos.

Quê?... se alguém acreditou nessa história de Deus punindo o homem? Ah, sim, claro que houve gente que cresse. Logo que os primeiros a ouvir o velho barbudo pagaram a taxa celeste, eles saíram a propagar a todos que novamente viam tudo o que outrora já contemplavam desde a infância mas não notavam... Isso foi o que bastou para que até mesmo os mais céticos pagassem para ver.

A taxa era cara, equivalia a mais da metade do que cada um recebia num ano, e era cobrada individualmente. Deus sabe o quanto cada um de nós recebe. E se pagássemos menos, não veríamos nada; sem contar no fato de que teríamos que pagar a quantia exata outra vez, não dava para apenas inteirar o valor. Bem, quanto aos pobres, claro que eles não teria condições de pagar. E você acha que o Justo Juiz não pensaria nisso ao dar sua sentença? Ele estipulou da seguinte maneira: quem ajudasse um pobre a pagar sua taxa receberia desconto de 50% no próximo pagamento. Assim, com aquela sede enorme de ter um desconto na próxima vez, não houve pobre que não tivesse um “padrinho”.

Assim se sucedeu, e agora vem a parte mais incrível – e irônica também. Ao contemplar o mero vôo de uma borboleta colorida, ou mesmo aquelas negras borboletas que se camuflam entre madeiras podres, a sensação interior de cada homem e mulher, idoso ou criança, era de estar no paraíso. Para se ter uma idéia, quadruplicou o número de poetas, em cada rua tinha um, juntamente com músicos que tratavam de inserir melodia aos seus versos. Romances? Puxa, aconteciam aos montes. Os jovens sentiam-se tão inspirados nos parques, que não se continham; eram loucamente atraídos pela beleza da beleza que seus parceiros ganhavam estando no meio de tanta vida.

Os pais enchiam seus olhos de lágrimas ao verem seus filhos correrem freneticamente na relva molhada pelo orvalho da madrugada. Uma segurança tomou conta do coração dos ambientalistas e naturalistas, sentiam não mais ser efêmera a vida na terra. Agradeciam e louvavam a Deus pela oportunidade de pagar pelo prazer de estar entre animais silvestres, flores exóticas, árvores frutíferas, e toda sorte de vida que passou a reflorecer no mundo.

Foi aí que, em cima de uma rocha, refletindo acerca de como fôramos ingratos e mal-agradecidos pelo majestoso presente que nos rodeava durante toda a nossa história, escorreguei-me de uma rocha lisa por causa da vastidão de musgos que nela havia e bati com a cabeça no na terra fofa...

Não tão fofo assim era o piso do chão do meu quarto – havia caído da cama –, quando de repente vi-me de volta à vida normal, cheia de incongruências e indiferenças muitas, desprezo pela vida e maldade no coração.

Um sonho e tanto, eu diria. Valeu a pena. Serviu-me de guia para uma vida mais vívida, para um provar mais ávido dos sabores da vida, para a consciência de uma responsabilidade madura e adulta em relação todos os bens naturais que Deus me presenteou.

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