3.1.14

Os versos de Doménico





Depois que Eliodora partiu. Doménico se refugiou em sua casa entre as montanhas e lá se silenciou. Poucos o viam fora de seu retiro. O que sabiam dele vinha de alguns versos seus escritos em papel sulfite, que ele eventualmente esquecia debaixo de um pé de jacarandá. Lá ele parecia meditar. Ou realizava preces. Alguns de seus empregados diziam que lá ele conversava sozinho. Eram eles – os empregados – que salvavam seus escritos da chuva e do sol. Levavam-nos à mercearia do seu Alfonso. Lá eram lidos e comentados nos finais de semana, quando os poucos roceiros que viviam na redondeza se reuniam para beber, conversar e jogar.


Não havia quem não gostasse do que lia. Aliás, apenas o Marien os lia, era o único plenamente alfabetizado. Lia em voz alta, para que todos ouvissem. Alguns desses versos eram afixados num mural, competindo com cartazes de festas de santo e anotações esgarranchadas das apostas feitas pelos jogadores de sinuca.


O primeiro poema pregado no bar, fora o Rubem que encontrou. Depois de lido por Marien, ficou exposto no mural para quem quisesse averiguar:

Lembra dos pássaros que anunciavam a aurora enquanto desejávamos que a noite não acabasse?

E o cansaço? Que só vinha quando já não tínhamos mais a presença um do outro...
Me recordo . E sinto saudade. Lembro do gosto suave de beijos calientes.
E sinto a ausência dos dias em que desejava mais a escuridão da noite que o dourado brilho da manhã.
Fiz uma prece e roguei que a eternidade não deixasse de tocar a realidade cruel. 
Por que tantos desencontros? 
Fazemos nossas trilhas ou o destino já traçou os caminhos em que nos perderíamos? 
Talvez seja impossível saber se cabe aos mortais cambiar as sentenças aparentemente já proferidas nos tribunais da vida. 
Não se mostra gloriosa a dura insistência dos relutantes sonhadores. 
Os céticos a veem e zombam. Porém, quem são os céticos?
Alguns sábios os identificaram como pobres amargurados que desistiram de tentar por medo de se frustrar. 
Talvez sejam apenas criaturas com défice de amor. Cuja vida se tornou tão árida que não lhes resta outro ofício que não o de menosprezar a insistência alheia. 
Sim, é inglória insistência dos amantes; pois, sim, é a relutante memória que nos conduz a confusos labirintos. 
Ao vento fresco que toca o rosto, me perco em um tempo que pode não ter sido. Qual tempo? Esvaio-me em dezenas de miragens que se juntam formando um complexo labirinto emocional. 
Perplexo, respiro e tento descanso, sabendo que desse labirinto não sairei tão já, se de fato, dele, um dia sairemos. 



Doménico Silvestre

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